No dia 03 de junho de 2021, o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão monocrática, deferiu Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828/DF1 que impossibilita a prestação de tutela jurisdicional pelo controle difuso e medidas administrativas do poder público no que se refere a despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública ocasionado pela Pandemia COVID-19.
A decisão sustenta haver elementos suficientes de lesão ou ameaça de lesão dos direitos fundamentais à moradia, à saúde, à dignidade e à vida, se cumpridas as desocupações em situações de vulnerabilidade da coletividade. Ou seja, em tese, a lide versa sobre a ponderação de direitos e garantias constitucionais fundamentais, no quais também se inclui o direito de propriedade e seus decorrentes, tais como os direitos de uso e fruição.
Certamente, o maior impacto da decisão do STF foi em relação às ocupações ilegais, esbulhos possessórios coletivos, anteriores a 20 de março de 2020, que se prolongam no tempo, sem efetividade de cumprimento da tutela jurisdicional, vez que, em seu comando geral, a referida decisão suspende, por 06 (seis) meses, o cumprimento da lei na proteção à posse e à propriedade, impedindo que magistrados e a polícia administrativa possam dar cumprimento aos mandados de reintegração de posse de natureza coletiva.
Ademais, apesar de nenhuma fundamentação a respeito, quando a decisão se refere genericamente em desocupações e remoções forçadas, também impede, nos casos específicos, o cumprimento de imissões na posse contra invasões coletivas, restringindo o poder reivindicatório do direito constitucional de propriedade.
Presunção interpretativa equivocada e prevalência do caso concreto
De acordo com a fundamentação da polêmica decisão, “os órgãos do poder judiciário costumam avaliar a regularidade da posse, sem considerar a excepcionalidade da situação da pandemia e os riscos à saúde e à vida que remoções podem gerar neste momento”. Portanto, com a devida venia, a decisão se pauta na presunção de que os juízes de direito do controle difuso não considerariam os riscos atuais da pandemia com a mesma sensibilidade sobre o tema, deslustrando um raciocínio, renovada venia, equivocado, como também contraditório ao próprio sistema jurisdicional brasileiro.
O juiz de direito de primeira instância é o que melhor conhece as peculiaridades locais da causa em sua competência absoluta funcional-territorial de atuação, conforme inteligência do art. 47 do Código de Processo Civil (CPC)2. É o magistrado do foro competente que avalia a situação fática-jurídica de localidade do imóvel e da situação das partes, e que promove a dilação probatória de perto para a sua convicção e posterior decisão, inclusive, quanto ao impulsionamento da execução do mandado.
Tanto é assim que a fundamentação e o dispositivo da Medida Cautelar na ADPF nº 828/DF fazem retornar aos órgãos judicantes do controle difuso o dever de apreciar os requisitos de aplicabilidade da decisão monocrática do Ministro Luis Roberto Barroso com relação a ocupações anteriores à pandemia: (a) ocupação de natureza coletiva anterior a 20 de março de 2020; (b) em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis.
Ou seja, o controle concentrado do STF não conhecerá, caso a caso, quais das invasões ou ocupações coletivas são aquelas nas situações supracitadas de moradia e de populações vulneráveis. Aliás, a avaliação de vulnerabilidade da coletividade que pratica o esbulho deve ser estudada com cautela pelo magistrado local, de modo que o Judiciário não seja conduzido por simulações de viés político-partidário, ideológico e/ou com base em distorções fática do caso concreto.
A própria decisão de controle concentrado clama atuação dos juízes dos foros competentes para o controle difuso na aplicação ou não da suspensão das medidas reintegração de posse, podendo o magistrado se convencer que os ocupantes irregulares não praticam moradia, trabalho ou que não há a vulnerabilidade requisitada in casu.
Nesse diapasão, apesar do efeito vinculante próprio do exercício do controle concentrado de constitucionalidade, serão os juízes a quo e os tribunais ad quem, que compõem as vias ordinárias, que aferirão se aplicam ou não a suspensão da desocupação ou reintegração de posse coletiva.
Decisão de efeitos gerais, mas de aplicação seletiva.
A contrário senso dos requisitos trazidos na decisão, pode-se afirmar que não cabe suspensão do cumprimento de mandado de reintegração de posse contra esbulho, se: (a) a ocupação for individual; (b) o imóvel não servir de moradia, tendo os ocupantes outro imóvel como residência para o isolamento social; (c) o imóvel ocupado não representar área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis; (d) a ocupação for posterior a 20 de março de 2020; (e) a ocupação for posterior a 20 de março de 2020, mas com a presença de vulnerabilidade das pessoas ocupantes, tendo o poder público que atuar com assistência social para o abrigo das pessoas ou outra forma que assegure moradia adequada; além de outras situações pontuadas na decisão.
Sendo assim, a aplicação da suspensão de cumprimento dos mandados de reintegração de posse de natureza coletiva recai novamente à apreciação do controle difuso do magistrado presidente do processo em questão, podendo verificar e decidir pela não aplicação da Medida Cautelar deferida parcialmente na ADPF nº 828/DF em razão de o caso concreto não apresentar os requisitos de aplicabilidade da decisão do Ministro do STF.
Ainda no campo da seletividade da aplicação da decisão, chama-se atenção à uma das ressalvas de inaplicabilidade do comando da decisão, qual seja, a que veda a paralisação dos procedimentos de “desintrusão de invasores em terras indígenas”. Isto porque, não há coerência interpretativa constitucional com fulcro nos direitos fundamentais apontados pelo julgador, nem fundamentação indutora do dispositivo em tal excludente, sobretudo, se a motivação é o período pandêmico da COVID-19. Há, neste ponto, venia, violação objetiva do princípio da isonomia, reforçando, a exemplo, a impossibilidade do estabelecimento de comando geral para o caso.
O protagonismo das melhores condições à saúde e o que seria o pedido adequado constitucionalmente
Também ganha relevo a ressalva acerca das “posições jurídicas que tenham por fundamento leis locais mais favoráveis à tutela do direito à moradia, desde que compatíveis com a Constituição, e decisões judiciais anteriores que confiram maior grau de proteção a grupos vulneráveis específicos, casos em que a medida mais protetiva prevalece sobre a presente decisão” constante da decisão monocrática.
Uma vez que, ao pontuar “maior grau de proteção” e medida mais protetiva, somando-se à motivação da decisão vinculada à saúde pública, há de se verificar, novamente no caso concreto, que o próprio cumprimento da decisões judiciais pode terminar por conferir maior proteção às pessoas, principalmente, porque não é raro que, nas áreas e imóveis invadidos, não se tenham as mínimas condições sanitárias de isolamento e higienização, que dirá o necessário reforço destas para a contenção do avanço da contaminação do COVID-19.
Logo, é possível se extrair da decisão que tal questão deve ser sopesada e, em objetiva aplicação do que poderia ser o pedido sob a ótica constitucional, deverá o Estado promover o necessário suporte humanitário e social àqueles que não disponham de tal condição ou passem a não ter acesso à moradia, não sendo este um ônus atribuível ao particular. É poder-dever do Estado em atuar com padrão eficiente no abrigo e cuidado das pessoas em estado de vulnerabilidade.
De mais a mais, uma decisão contrária ao Direito.
As decisões em controle de constitucionalidade concentrado devem guardar estreita correspondência à possível interpretação de lesão à ordem constitucional, motivo pelo qual, ao proferir decisão sob o manto da presunção de ausência de sensibilidade pelos juízos ordinários, o STF termina por inovar a ordem legal, invadindo esfera do controle difuso.
Tanto é assim que, com semelhante temática, tramita no Poder Legislativo Federal o Projeto de Lei nº 827/2020, citado na própria decisão. A par da existência de um Projeto de Lei sobre o tema, é importante que se registre que inexiste base constitucional para a consideração de projeto de lei não aperfeiçoado e aprovado como lei pelo processo legislativo, ao passo que sua própria tramitação denota a inexistência de base normativa própria a embasar a decisão proferida, registrando-se: de semelhantes conteúdo e comandos.
Ganha relevo contextualizado, o fato de que a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da República e os Estados manifestaram contrariamente ao conhecimento da ADPF nº 828/DF pela inépcia da inicial e inobservância do princípio da subsidiariedade, tendo em vista a não indicação de casos concretos e porque o controle judicial deve ser exercido pela via difusa. Ainda, no mérito, dentre outros fundamentos, argumentam que cabe ao poder judiciário apenas o controle pontual de eventuais desvios, e não a atuação na qualidade de legislador positivo, causando instabilidade social e incentivo a ocupações irregulares.
E tais instituições supracitadas concluem que questões possessórias e fundiárias envolvem a colisão de direitos fundamentais, devendo ser sopesados à luz dos casos concretos e peculiaridades locais, sendo descabida uma solução apriorística e uniforme para todo território nacional.
A presente Medida Cautelar na ADPF nº 828/DF foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tendo várias entidades admitidas como amicus curiae: Conselho de Direitos Humanos do Estado da Paraíba, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia (APD) e Coletivo por um Ministério Público Transformador, Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores – GAETS, Terra de Direitos e Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, Associação Amigos da Luta dos Sem Teto, o Partido dos Trabalhadores – PT, Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU, o Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH, a Petrobras, Acesso Cidadania e Direitos Humanos, Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, Núcleo de Amigos da Terra-Brasil e o Centro de Direitos Econômicos e Sociais – CDES.
Verifica-se que o Ministro Relator se deparou com várias entidades no papel de amicus curiae, em larga medida, entidades que, inclusive, suportam movimentos que praticam esbulhos possessórios como diretriz para que obtenham êxito em seu propósito existencial, sendo imperioso para a correta dialética processual que entidades representativas dos setores da habitação urbana, confederações, federações e associações do setor imobiliário e do agronegócio brasileiro, também se façam ouvir, dada a contraposição de interesses e direitos inerentes ao objeto do julgado.
Temos assim uma decisão que, apesar dos melhores propósitos humanistas, termina por apresentar conflito objetivo com a Constituição Federal e lança ao Supremo Tribunal Federal uma habilitação para decisões gerais em casos em que, para se atingir a verdadeira justiça, o exame dos fatos e realidade no caso concreto demanda a apreciação dos juízos ordinários. Ainda que tenha o Eminente Ministro Luís Roberto Barroso elencado requisitos a serem aferidos pelos julgadores ordinários, sendo este ponto de grande relevo e que se conflita com a exposição midiática da decisão, que pode levar o leitor ao equívoco de considerar sua aplicação geral e automática.
Enfim, mesmo sendo uma decisão de efeito vinculante de controle concentrado de constitucionalidade, ainda será o controle difuso dos magistrados em geral que definirá a suspensão ou não das reintegrações de posse sob a ótica elucidativa do caso concreto.
Ivan Calvo, Sócio Fundador e Diretor de Direito Imobiliário e Agrário da MoselloLima.
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161. Ante o quadro, defiro parcialmente a medida cautelar para:
i) com relação a ocupações anteriores à pandemia: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública (Decreto Legislativo nº 6/2020);
ii) com relação a ocupações posteriores à pandemia: com relação às ocupações ocorridas após o marco temporal de 20 de março de 2020, referido acima, que sirvam de moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada; e iii) com relação ao despejo liminar: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º, da Lei nº 8.425/1991), nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável, mantida a possibilidade da ação de despejo por falta de pagamento, com observância do rito normal e contraditório.
62. Ficam ressalvadas da abrangência da presente medida cautelar as seguintes hipóteses:
i) ocupações situadas em áreas de risco, suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, inundações ou processos correlatos, mesmo que sejam anteriores ao estado de calamidade pública, nas quais a remoção poderá acontecer, respeitados os termos do art. 3º-B da Lei federal nº 12.340/2010;
ii) situações em que a desocupação se mostre absolutamente necessária para o combate ao crime organizado – a exemplo de complexos habitacionais invadidos e dominados por facções criminosas – nas quais deve ser assegurada a realocação de pessoas vulneráveis que não estejam envolvidas na prática dos delitos;
iii) a possibilidade de desintrusão de invasores em terras indígenas; e
iv) posições jurídicas que tenham por fundamento leis locais mais favoráveis à tutela do direito à moradia, desde que compatíveis com a Constituição, e decisões judiciais anteriores que confiram maior grau de proteção a grupos vulneráveis específicos, casos em que a medida mais protetiva prevalece sobre a presente decisão.
63. Determino a intimação da União, do Distrito Federal e dos Estados da Federação, assim como da Presidência dos tribunais de justiça e tribunais regionais federais, para ciência e imediato cumprimento da decisão. Intime-se também o Conselho Nacional de Direitos Humanos, para ciência.
2Art. 47. Para as ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro de situação da coisa.
§ 1º. O autor pode optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição se o litígio não recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova.
§ 2º. A ação possessória imobiliária será proposta no foro de situação da coisa, cujo juízo tem competência absoluta.