“Farinha pouca, meu pirão primeiro”, ditado popular traz a mensagem que o ser humano diante de um cenário de escassez, se faz necessário pensar em si primeiro, isto é, quando a quantidade não for suficiente para todos acessarem, deverá pensar em primeiro satisfazer a si e não dividir o pouco com os demais. O ditado popular, apesar de ser frequentemente criticado por sua violação a princípios morais, sob o viés do direito, pode-se dizer que foi normatizado através dos arranjos jurídicos que legitimam os credores a buscarem garantias quando oferecem seus créditos para terceiros, sobretudo se estes estão em situações que o acesso a ativos está limitado, seja por restruturação ou até mesmo em processos que culminam na recuperação judicial ou decretação de falência.
No cenário de captação de recursos, existem aqueles que objetivam oferecer crédito e garantir o seu recebimento com os ganhos e outros que buscam captação de recursos, seja para ampliação do seu negócio ou para reerguer a atividade empresarial diante de uma situação que afeta a sua capacidade econômica seja transitória ou permanente.
A migração de recursos entre os agentes que possuem superávit para aqueles que estão em déficit destes é a base de diversas relações jurídicas e todas pautadas no viés risco versus retorno. Nesse viés, não existe a certeza se a captação do recurso pelo agente deficitário terá o condão de atingir o objetivo de reestruturar a empresa e adimplir a obrigação de devolver o recurso transferido pelo agente superavitário.
Para captação de recursos existe cenário amplo de medidas, dentre as quais pode-se reestruturar uma dívida mediante alongamento desta com ou sem garantia e equity, outra possibilidade é obter financiamento contraindo uma dívida com ou sem garantia, o desinvestimento mediante leaseback ou até via valor mobiliário através de securitização de ativos ou dívidas. De todas as modalidades acima, o custo do risco encontra-se embutido e a existência de garantias modulam o viés risco versus retorno não apenas do ponto de vista comercial, mas também por parte da legislação.
Todo credor quer receber o seu crédito e o direito visa proteger essa premissa, tanto que o Código Civil já traz a racionalidade de que o devedor responde com todos os seus bens pela dívida contraída. Ocorre que este ponto é sensível diante da escassez, ou seja, se o devedor já não tem mais como responder por suas dívidas, surgem institutos jurídicos que visam garantir o recebimento pelo credor. Todavia, diante de múltiplos credores e escassez de bens que respondam, como garantir a farinha pouca para tantos pirões? Eis o desafio!
A premissa que todos os bens respondem serve quando existe apenas poucos credores e os bens satisfazem a todos, contudo foi necessário criar mecanismos de privatização de acesso aos ativos pela coletividade de agentes mediante estruturas contratuais e arranjos negociais. O acesso a determinados bens passaram a ser privatizados para aqueles que assim o pactuaram, surgindo questões relacionadas a ordem de preferência de pagamento.
Portanto, a premissa de que o devedor responde com todos os seus bens pela dívida contraída já é vista como depende da ordem de preferência estabelecida pela legislação para cada caso. Ademais, importante ressaltar sobre a ordem de preferência, ninguém quer ser o credor quirografário.
As estruturas de privatização de acesso a ativos são medidas com respaldo jurídico que visam a segregação do patrimônio do devedor para determinado agente credor, limitando o acesso desses aos demais credores que buscam satisfazer os seus créditos com o patrimônio do devedor, tornando-o mais preferencial para determinados agentes. Portanto, utilizando raciocínio análogo ao ditado popular acima citado, o que a legislação busca garantir é o atendimento a expectativa de pagamento através de quem serão os elencados na prioridade de pagamento, sobretudo em sistemas de concorrência nos regimes falimentares ou na recuperação da empresa.
O crédito é fundamental para a sociedade e o desenvolvimento da atividade empresarial, contudo, o credor precisa ter a segurança de que o seu “empréstimo” será pago. Contudo o credor tem receio que outras posições de créditos mais privilegiados que o seu possam diluir a sua capacidade de receber, criando uma espécie de concorrência, principalmente diante de empresas em crises e com medidas de restruturação. Diante da pluralidade de credores e possível escassez de ativos, o objetivo passa a ser garantir o recebimento e cumprimento da obrigação pactuada através de tratamento preferencial do seu crédito, porém nem todos vão conseguir essa posição privilegiada e por vezes, nem todos os bens garantirão o pagamento para todos.
Diante da farinha pouca, traduzido em poucos ativos disponíveis para satisfazer o débito pelo devedor, buscar o privilégio de acesso ganha relevância no momento de análise do risco e da possibilidade de retorno, principalmente diante de uma coletividade de agentes. Busca-se sempre a alta probabilidade de adimplemento da obrigação pactuada e caso esta não seja possível, a garantia de retorno seja assegurada, facilmente traduzido na possibilidade de transferir um ativo para o credor diante da impossibilidade do devedor em satisfazer as obrigações.
O sistema de garantias é uma das formas de conseguir acessar esse ativo de forma segregada e privatizada com o destaque do bem específico que passará a responder pelo débito, sendo bastante popular no Brasil. As garantias podem ser pessoais ou reais, as primeiras podem ser subclassificadas em aval e fiança, enquanto a segunda pode ser a hipoteca, o penhor ou a anticrese.
O credor prefere as garantias de natureza real por possuírem um privilégio de acesso no adimplemento das obrigações, sobretudo porque haverá um bem que responderá pelo valor total do débito contraído pelo devedor e o credor terá preferência para aliená-lo.
Porém, surgiu outra posição mais favorável de segregação de ativos: a alienação fiduciária. Esta possui um tratamento diferenciado por ocorrer um destaque do ativo de forma transitória para o credor, ou seja, trata de propriedade resolúvel do bem móvel ou imóvel dado em garantia. Como instituto considerado privilegiado, torna-se desejado por todos, porém, nem todos poderão usufruir, por não existir alienação fiduciária de graus como ocorre com as hipotecas, por exemplo. Nesta segregação, considerada mais privilegiada que a garantia real, a propriedade do bem é transferida de forma provisória para a credora.
Importante mencionar que a análise do risco versus retorno na recuperação judicial é alto, o que já por si só inviabiliza que tais empresas obtenham recursos no mercado necessários para resolver a crise de liquidez, seja por não ter mais possibilidade de oferecer garantia ou pelo alto risco de ter decretada a falência e o crédito concedido ser quirografário. Diante do acesso segregado de ativos, sobretudo em situação de escassez já instaurada mediante a necessidade de provimento judicial mediante ação de recuperação judicial, o legislador trouxe mais uma forma superprivilegiada de garantir o acesso a ativos, o DIP financing.
O DIP financing trata de financiamento do devedor no curso da recuperação judicial para que possam continuar captando recursos com a finalidade de atender ao princípio da preservação da empresa, porém trouxe mecanismos para que o financiador tenha segurança jurídica de realizar a operação. Na recuperação judicial, o financiador terá privatização de acesso ao ativo com prioridade de receber o pagamento em detrimento dos demais créditos habilitados no plano, transpondo essa prioridade na hipótese de ser decretada a falência.
Na pluralidade de credores e escassez de patrimônio do devedor, existe a busca pelo privilégio e prioridade de recebimento através de segregação do ativo e a sua privatização para agentes específicos. A racionalidade do direito é diante da possível concorrência de credores, aqueles que previamente visualizaram o risco e adquiriram a farinha terão a chance de ter o pirão e esta premissa é necessária para garantir a segurança das operações.