TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA CRIA “NOVA” COMISSÃO REGIONAL DE CONFLITOS FUNDIÁRIOS
Um ano depois de sua instituição, a “Comissão de Conflitos Fundiários” deixa de existir, para dar lugar à “Comissão Regional de Conflitos Fundiários”.
O que mudou?
Em 2021, em virtude da emergência em saúde pública decorrente da pandemia da COVID-19, foi promulgada a Lei Federal nº. 14.216, estabelecendo medidas excepcionais para suspender o cumprimento de decisões judiciais que resultassem em desocupação forçada de imóveis urbanos em ações de despejo decorrentes de contrato de locação.
Nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 828, o Ministro Luís Roberto Barroso estendeu a aplicação dos efeitos da referida lei também para imóveis rurais, suspendendo as reintegrações de posse “com relação a ocupações anteriores à pandemia”, ou seja, apenas para as invasões que ocorreram antes do marco temporal de 20 de março de 2020, justamente no sentido de se evitar o estímulo a novas invasões, suspensão essa que perdurou até outubro de 2022.
Em virtude da melhora do cenário epidemiológico no Brasil, em 31/10/2022, o Supremo Tribunal Federal determinou que fosse adotado um regime de transição para a retomada da execução das reintegrações de posse coletivas e de vulneráveis que estivessem suspensas por força da ADPF nº 828.
Nesse regime de transição, a Corte determinou a criação, em todo o país, de comissões direcionadas ao tratamento das questões fundiárias coletivas, bem como ao monitoramento e acompanhamento das ações possessórias e petitórias suspensas por força da mencionada ADPF.
Foi nesse contexto que, em 09/02/2023, o Poder Judiciário do Estado da Bahia instituiu sua Comissão de Conflitos Fundiários, através do Ato Normativo Conjunto nº 04[1].
Segundo o referido ato normativo, a comissão, composta por um desembargador, três magistrados e um servidor (designados pelo Decreto Judiciário nº 139, de 09/03/2023), teria como objetivo minimizar os conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais e/ou urbanos, e estabelecer ou restabelecer o cumprimento de mandados de reintegração de posse ou de despejo. Nesse ponto, é oportuno destacar que a atuação da comissão deveria estar restrita a processos cujas invasões fossem coletivas e tivessem ocorrido antes de março de 2020, conforme determinado no bojo da ADPF nº. 828.
Dentre as atribuições listadas para a Comissão, estavam a realização de visitas técnicas na área de conflito, com elaboração do respectivo relatório, e a participação em audiências de mediação e conciliação, agendadas no âmbito dos casos judicializados.
Ocorre que a realidade, infelizmente, mostrou-se diferente. O que se viu na prática foram juízes que, sem orientação, remetiam, indistintamente, todo e qualquer processo para o crivo da Comissão, que, por seu turno, teve uma atuação extremamente tímida, especialmente tendo em vista o grande volume de ações possessórias em trâmite no Estado.
Paralelamente, em decorrência da determinação contida no regime de transição da ADPF nº. 828, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº. 510[2], que determinou que os Tribunais deveriam constituir Comissão Regional de Soluções Fundiárias “para funcionar como estrutura de apoio à solução pacífica das ações possessórias e petitórias coletivas”.
Diante dessa nova determinação o TJBA buscou, inicialmente, convalidar a Comissão de Conflitos Fundiários pré-existente, mas, na sequência, a presidência do Tribunal entendeu pela necessidade de total readequação, o que ensejou a revogação do Ato Normativo Conjunto nº. 04/2023 e a instituição, por meio do Decreto Judiciário TJBA nº. 367/2024[3], da Comissão Regional de Soluções Fundiárias (CRSF) do Poder Judiciário do Estado da Bahia.
Dentre as principais alterações que podem ser extraídas no Decreto, estão o aumento das atribuições da Comissão, que, contudo, mantiveram o escopo do ato normativo anterior, e a mudança na composição, já que, a partir de agora, a Comissão será composta por, no mínimo, um desembargador como presidente e quatro magistrados, além da necessidade de indicação de um suplente para cada membro.
Um ponto de atenção é que o ato normativo anterior previa uma atuação transitória da Comissão, com a extinção após a conclusão dos respectivos trabalhos[4], o que se amolda ao intuito do STF. Lado outro, o Decreto atual[5] estabelece um mandato de dois anos para os membros, contrariando o escopo contingente para o qual as comissões foram idealizadas. Essa previsão de diferentes mandatos dá espaço para uma atuação permanente e ilimitada da Comissão, em desacordo com determinação do STF, que sinalizou uma atuação pontual e específica no regime de transição para a retomada da execução das reintegrações de posse coletivas e de vulneráveis que estivessem suspensas por força da ADPF nº. 828.
Após a publicação do Decreto, foi divulgado um edital[6] para que os juízes se candidatassem às vagas na Comissão, com critérios de antiguidade para a seleção; não tendo, até o momento, sido divulgados os nomes.
O que se espera é que o Tribunal atue com a celeridade necessária na seleção, nomeação e treinamento não apenas dos novos membros, mas também de todos os magistrados de primeiro grau que atuem em demandas possessórias, a fim de que tenham conhecimento do real escopo e do procedimento de tramitação dos processos na Comissão, com vistas a concretização real do objetivo primordial da criação da Comissão em si.
Isso porque, conforme dados do CNJ[7], somente no ano de 2023 foram distribuídas mais de 2.400 novas ações de reintegração de posse no estado da Bahia:
Considerando as demandas mais antigas, o Poder Judiciário da Bahia acumula, atualmente, mais de 18.000 ações possessórias pendentes de julgamento:
Tendo em vista os números acima mencionados, é imprescindível a reflexão acerca das consequências da atuação irrestrita da Comissão. Se todos os conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais ou urbanos, judicializados ou não, independente da fase processual, forem submetidos a Comissão de Conflitos Fundiários, haverá morosidade ainda maior do Judiciário na condução do rito previsto pela Resolução e no cumprimento das liminares, especialmente tendo em vista que os componentes da comissão cumulam outras atividades judicantes.
O que se defende aqui é que a atuação das Comissões Regionais de Conflitos Fundiários se restrinja às reintegrações de posse que se encontravam suspensas por força da ADPF, ou seja, invasões coletivas ocorridas antes de 20/03/2020. Isso porque a Resolução nº. 510 do CNJ, repita-se, foi criada para cumprir o quanto determinado na ADPF, que estabeleceu um regime de transição apenas para as reintegrações de posse até então suspensas.
É imperioso reconhecer a atuação irrestrita da Comissão Regional de Conflitos Fundiários em todo e qualquer cumprimento de reintegração de posse acarretará consequências extremamente gravosas para os jurisdicionados e o próprio Poder Judiciário, já que haverá demora significativa no cumprimento das liminares de reintegração de posse, o que pode levar à consolidação da invasão a ponto de inviabilizar o cumprimento, fomentando, significativamente, a ocorrência de novas invasões.